A Felicidade: qual e onde? - Santo Agostinho

XXII. 32. Longe de mim, Senhor, longe do coração do teu servo, que se te confessa, longe de mim considerar-me feliz, com qualquer alegria com que me alegre. Há uma alegria que não é concedida aos ímpios, mas àqueles que desinteressadamente te servem, cuja alegria és tu mesmo. E a vida feliz consiste em sentir alegria junto de ti, em ti, por ti: esta é a vida feliz e não há outra. Aqueles, porém, que julgam que há outra vida feliz, perseguem outra alegria que não a verdadeira.
Contudo, a sua vontade não se afasta de uma certa imagem de alegria.
XXIII. 33. Não é certo, pois, que todos queiram ser felizes, porque aqueles que não querem sentir alegria em ti, o que é a única vida feliz, não querem realmente a vida feliz. Ou será que todos o querem, mas, porque a carne tem desejos contrários ao espírito e o espírito desejos contrários à carne, a ponto de não fazerem o que querem, caem naquilo de que são capazes, e contentam-se com isso, porque aquilo de que não são capazes não o querem tanto quanto é necessário para serem capazes. Com efeito, pergunto a todos se preferem encontrar a alegria na verdade ou na falsidade: não hesitam em dizer que preferem encontrá-la na verdade, como não hesitam em dizer que querem ser felizes. Pois a vida feliz é uma alegria que vem da verdade. É uma alegria que vem de ti, que és a Verdade, ó Deus, que és a minha luz, salvação da minha face, ó meu Deus. Todos querem estavida feliz, todos querem esta vida que é a única feliz, todos querem a alegria que vem da verdade. Conheci, por experiência, muitas pessoas que queriam enganar, mas ninguém que quisesse ser enganado. Onde é que, então, eles conhecem esta vida feliz senão onde conhecem também a verdade? E amam a verdade porque não querem ser enganados, e, quando amam a vida feliz, que não é outra coisa senão a alegria que vem da verdade, amam de facto também a verdade, e não a amariam se dela não houvesse algum conhecimento na sua memória. Porque é que, então, não sentem alegria na verdade? Porque é que não são felizes? Porque se ocupam mais empenhadamente em outras coisas que os fazem infelizes, em vez de os fazer felizes aquilo de que tenuemente se lembram. Por enquanto, ainda há um pouco de luz entre os homens; caminhem, caminhem, para não serem apanhados pelas trevas.
34. Mas porque é que a verdade gera o ódio, e se tornou inimigo para os homens aquele que prega a verdade – apesar de eles amarem a vida feliz, que não é senão a alegria que vem da verdade – a não ser porque a verdade é amada de tal modo que todos aqueles que amam outra coisa querem que seja verdade aquilo que amam e, porque não queriam ser enganados, não querem ser convencidos de que estão enganados? E assim odeiam a verdade por causa daquilo que amam em vez da verdade. Amam-na quando resplandece, odeiam-na quando censura. Com efeito, uma vez que não querem ser enganados e querem enganar, amam-na quando ela se revela, e odeiam-na quando ela os denuncia. Por isso, ela retribuir-lhes-á, fazendo com que aqueles
que não querem ser por ela denunciados, ela os denuncie mesmo sem eles quererem, e ela mesma não se lhes revele a eles. Assim, assim, mesmo assim o espírito humano, mesmo assim cego e débil, torpe e indecoroso, quer estar oculto; mas não quer que nada lhe esteja oculto.
Pelo contrário, é-lhe dado que ele não esteja oculto à verdade, mas que a verdade lhe esteja oculta a ele. Todavia, sendo infeliz, mesmo assim antes quer sentir alegria nas coisas verdadeiras do que nas falsas. Feliz será, pois, se, sem que nenhuma infelicidade o perturbe, se alegrar unicamente com a verdade, em virtude da qual são verdadeiras todas as coisas.
Trecho retirado do livro "Confissões"